Na Argentina, a cesta de bens e serviços usada para calcular o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) ainda reflete hábitos de consumo de quase duas décadas atrás. Isso significa que produtos como jornal impresso e DVD têm mais peso no cálculo da inflação do que serviços modernos, como streaming e aplicativos de mobilidade.
Um modelo defasado de cálculo
Atualmente, o IPC argentino se baseia em uma pesquisa de 2004-2005, com ajustes menores realizados em 2016. Embora 85% dos itens permaneçam válidos, a estrutura de pesos e categorias não acompanha a realidade de consumo atual. Por isso, o índice não reflete a realidade econômica e social contemporânea da população. Esse descompasso levanta sérias questões sobre a precisão da inflação oficial, que é fundamental para políticas públicas e decisões econômicas.
Defasagem que impacta a inflação
Analía Calero, docente da Universidad Católica Argentina (UCA), explica que o IPC argentino retrata um “consumidor vintage”, que aluga DVDs em vez de usar streaming. Ela ressalta que o modelo ignora categorias de consumo essenciais hoje em dia, como assinaturas digitais, serviços de aplicativos de mobilidade e produtos tecnológicos modernos, como smartphones.
- Reprodutores de MP3 e câmeras digitais ainda fazem parte do cálculo
- Serviços de streaming e táxi por app não são considerados
- Produtos e categorias de consumo de 2004-2005 ainda influenciam a medição
Reformulação do IPC está em andamento
Diante de pressões de especialistas e recomendações do FMI (Fundo Monetário Internacional), o Indec (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos) avançou na reformulação do Índice de Preços ao Consumidor. O novo modelo será baseado na Pesquisa de Despesas Familiares de 2017-2018, uma base muito mais atualizada. Esse ajuste, embora técnico, tem implicações de grande alcance, inclusive políticas e eleitorais. A nova metodologia prevê:
- Ampliação de 320 mil para 500 mil preços monitorados
- Expansão do número de estabelecimentos de 16,7 mil para 24 mil
- Processo de coleta de dados totalmente digitalizado
Impactos na governança de Javier Milei
Com a inflação caindo, a reformulação do IPC pode elevar os números oficiais, gerando impacto direto na narrativa de sucesso econômico de Javier Milei. Especialistas estimam que a inflação de 2024, se calculada com a nova cesta, poderia ser até 15 pontos percentuais maior. Isso tem implicações sobre:
- Reajustes de salários e contratos trabalhistas
- Definição de cestas de pobreza e programas sociais
- Indicadores de desempenho macroeconômico (como PIB real)
Portanto, o momento de implementação — após as eleições de outubro — é estratégico, e a interferência política não pode ser descartada. Federico Servideo, da Câmara de Comércio Argentino Brasileira de São Paulo, destaca que a atualização é consensual no meio técnico, mas pode ser usada de forma ambígua por diferentes grupos políticos.
Comparação com o Brasil
As instituições internacionais, como o FMI, recomendam a atualização contínua da cesta de consumo para aferição de inflação. No Brasil, a última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) foi realizada entre 2017-2018. Embora também considerada defasada, ela já reflete de forma mais realista os padrões de consumo atuais — incluindo:
- Streaming e TV por assinatura
- Aplicativos de transporte e serviços compartilhados
- Produtos financeiros e digitais de consumo
André Braz, economista da FGV Ibre, explica que a nova edição da POF (2024-2025) está em fase final de análise, o que permitirá a atualização dos índices de preço conforme a evolução do consumo brasileiro. Ainda assim, a Argentina está a anos-luz de alcançar a atualidade de cálculo do IPC brasileiro.
Conclusão
A atualização do Índice de Preços ao Consumidor na Argentina é mais do que uma mudança estatística. Trata-se de uma correção estrutural de grande impacto econômico e político. Ela afeta diretamente a percepção de sucesso de políticas de combate à inflação, a negociação de acordos trabalhistas, a definição de cestas básicas de consumo, entre outros fatores. Quanto mais atrasada a cesta de consumo, mais distorcida fica a realidade econômica apresentada pelo índice.