A Intervenção Americana que Pode Ter Levado ao Golpe de 1964
No coração da Guerra Fria, os Estados Unidos planejaram uma intervenção militar no Brasil que teve a potencialidade de desencadear uma crise diplomática e militar. Esta operação, codinome Brother Sam, surgiu no mato de um cenário político tensão no país, ameaçando os interesses americanos na região. Embora os planos fossem abortados, o episódio demonstra a capacidade de interferência externa que os superpotentes eram capazes de exercer sobre a América Latina.
Ao invés de simplesmente enviar observadores ou conselheiros, Washington preparou um esquema de proporções significativas. Organizou um porta-aviões, um porta-helicópteros, um posto de comando aerotransportado, seis contratorpedeiros (incluindo dois equipados com mísseis teleguiados), e quatro navios-petroleiros. Esta força-tarefa militar, carregada com centenas de toneladas de armas, estava pronta para desembarcar no Brasil, com a suposta chegada prevista entre os dias 10 e 14 de abril de 1964.
Especificamente, os documentos históricos revelam a intenção de fornecer equipamentos de guerra, incluindo armas letais e agentes químicos como o CS Agent (gás lacrimogêneo), destinados a apoiar forças políticas internas que conspiravam contra o governo do então presidente João Goulart. O objetivo declarado era garantir que a transição de poder fosse conduzida pela direita golpista, alinhada aos interesses americanos, e evitar a instalação de um governo considerado ‘de esquerda’ ou ‘comunista’. Esta foi uma demonstração clara de poder projetado para intimidar e influenciar o resultado político brasileiro.
Motivações e Planejamento da Operação Brother Sam
O cenário político brasileiro de 1964 estava polarizado. O governo de João Goulart, embora reformista e não comunista, era visto por Washington por intermédio de um prisma anticomunista exacerbado. Os líderes americanos, especialmente no Departamento de Estado e na CIA, alarmados com a possibilidade de um alinhamento do Brasil com o bloco soviético, agiram com base na hipótese de emergência.
O plano datilografado, conhecido como Plano de Defesa Interna para o Brasil, datava de novembro de 1963, sob a coordenação do diplomata Abraham Lincoln Gordon, então embaixador dos EUA. O texto, dirigido ao conselheiro de Segurança Nacional McGeorge Bundy, já previa a necessidade de contato secreto com conspiradores brasileiros e a provável realização de entregas clandestinas de armas. Esta não foi uma reação espontânea às movimentações golpistas, mas sim parte de um planejamento estratégico anterior, que remonta ao governo de John F. Kennedy.
O medo era legítimo ou não? Historicamente, contestado. Pelo relato de historiadores como Carlos Fico, a operação foi conduzida com a máxima seriedade, envolvendo agências como o Departamento de Estado e a CIA, e demonstrando preocupação com a estabilidade política brasileira sob a liderança de Goulart. Apesar das divergências sobre a ‘real’ ameaça comunista, há consenso em que os EUA usaram esse argumento para justificar sua interferência.
Os americanos identificaram os ‘forças amistosas’ dentro do Exército brasileiro, lideradas pelo general José Pinheiro de Ulhoa Cintra. Estes, considerados ‘revolucionários’ e leais aos interesses dos EUA, seriam os principais veículos para a implementação do golpe. A ideia não era apenas apoiar, mas garantir material de combate e logística para os aliados locais.
O Desenrolar dos Eventos: Do Planejamento à Desmobilização
O golpe militar ocorreu exatamente quando os navios americanos estavam prestes a sair do porto da Virginia. No entanto, o destino reservou uma reviravolta. Antes mesmo da chegada, o primeiro presidente do regime militar, Humberto Castelo Branco, contactou Washington para informar que o apoio americano não era mais necessário. Esta foi a ordem crucial que levou à desmontagem da Operação Brother Sam.
O historiador Carlos Fico descreveu com clareza: “a Brother Sam começou a ser desmontada”. Mesmo antes da confirmação da vitória golpista, os americanos receberam o sinal verde para retornar. O esquadrão, inicialmente despachado para dar ‘força imediata’, transformou-se em um símbolo de uma diplomacia intervencionista que, por falta de necessidade prática, foi revertida.
O custo de cancelar a operação foi outro fator crucial. O telegrama do secretário de Estado Dean Rusk ao embaixador Gordon mencionou expressamente o gasto de 2,3 milhões de dólares. A preocupação era evidente: ‘quem paga?’. Esta questão prática, mais do que a ideologia ou o discurso anticomunista, marcou o final da aventura intervencionista norte-americana no Brasil.
O governo militar reconheceu a necessidade de estabilizar o país e assumiu o controle, mas sem o respaldo militar que os americanos tinham preparado. O Brasil “aparentemente, escapou de pagar para quase ser invadido”, como resume Fico. Um dos principais produtos da Operação Brother Sam, o submarino desembarcador, nunca chegou às águas brasileiras.
Paralelos Contemporâneos: Tarifas e Interferência Estratégica
Após décadas de distanciamento, os EUA retomaram um padrão de interferência no Brasil, agora expresso de forma diferente. O recente tarifaço imposto pelo governo Trump ao comerciário brasileiro não é um fenômeno isolado, mas uma continuidade de um padrão estratégico de influência.
Como afirma a socióloga Mayra Goulart, “São os Estados Unidos atuando no papel de potência hemisférica e, com isso, manifestando ingerência nos países que eles entendem como de sua área de influência”. Embora os métodos tenham evoluído — deixando de operações militares clandestinas para focar em ferramentas econômicas e diplomáticas —, o objetivo de manter ou aumentar o controle estratégico permanece intocado.
Em ambos os episódios, observa o cientista político Enrique Natalino, há uma preocupação com a manutenção da dominação dos interesses hegemônicos sobre as decisões internas do Brasil. O que mudou? A forma, não o essencial. A Operação Brother Sam de 1964 foi um aviso de que a América Latina estava longe de ser uma esfera de livre interferência americana, mesmo na Guerra Fria.