O debate sobre a formação de uma Otan islâmica tem ganhado força após o ataque israelense ao Catar em setembro, que resultou na morte de membros do Hamas. A ação, considerada “além do horizonte”, usou mísseis balísticos lançados de forma inesperada, revelando a vulnerabilidade de nações do Golfo diante de ameaças externas.
Ataque a Doha e a reação do Golfo
Na manhã de 9 de setembro, cerca de dez caças israelenses sobrevoaram o Mar Vermelho e atacaram um bairro nobre de Doha, onde integrantes do Hamas se reuniam para discutir um possível cessar-fogo em Gaza. Embora o Catar seja um “grande aliado não membro da Otan” dos Estados Unidos, que mantém sua maior base regional no país, isso não impediu o ataque.
Além disso, o Catar, apesar de contar com sistemas de defesa limitados, pouco pôde fazer contra mísseis balísticos, cuja trajetória passa pela atmosfera ou até o espaço sideral. Essa vulnerabilidade expôs a fragilidade de depender exclusivamente de aliados ocidentais para a segurança regional.
Desconfiança em relação aos EUA
O ataque israelense abalou a confiança dos países do Golfo em relação aos Estados Unidos, considerados até então como a principal garantia de segurança. Especialistas como Kristin Diwan, do Instituto dos Estados Árabes do Golfo, acreditam que o episódio marcou um ponto de virada nas relações de defesa da região. Sanam Vakil, da Chatham House, reforça que os governantes do Golfo buscam autonomia estratégica devido à crescente desconfiança na aliança com os EUA.
Busca por novas alianças de defesa
Diante desse cenário, o conceito de uma Otan islâmica começou a ser discutido entre líderes árabes. Em uma cúpula de emergência promovida pela Liga Árabe e pela Organização da Cooperação Islâmica, o Egito propôs a criação de uma força-tarefa regional semelhante à Otan. Os seis membros do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) — Bahrein, Kuwait, Omã, Catar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos — ativaram a cláusula de defesa mútua, equivalente ao Artigo 5 da aliança atlântica, em que um ataque a um é considerado ataque a todos.
Os ministros da Defesa da região também decidiram reforçar a cooperação militar, aprimorar o sistema de alerta de mísseis e realizar exercícios conjuntos. Na mesma semana, a Arábia Saudita firmou um acordo de defesa mútua com o Paquistão, sinalizando a ampliação de parcerias de segurança fora do eixo tradicional com os EUA.
Realidade ou mito: a verdade sobre a ‘Otan islâmica’
Apesar das especulações, especialistas como Andreas Krieg, da King’s College London, destacam que uma Otan islâmica realista ainda está longe de acontecer. Segundo ele, os países do Golfo evitam envolvimento em conflitos que não consideram diretamente vitais a seus interesses nacionais. No entanto, a mentalidade de depender exclusivamente de terceiros para a defesa está lentamente mudando, especialmente após o ataque a Doha.
Outra possibilidade levantada é o chamado “formato 6+2”, citado por Cinzia Bianco, do Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR). Esse modelo inclui os seis países do CCG, além de Turquia e Egito. A Turquia, em particular, é vista como parceira confiável, com tropas já estacionadas no Catar desde 2017. O Egito, por sua vez, tem força militar, mas sua confiabilidade ainda é questionada por alguns países do Golfo.
Mesmo que o “6+2” venha a se consolidar, a transição será lenta e discreta, como apontado por Krieg. Muitas mudanças ocorrerão nos bastidores, com foco em integração de sistemas de defesa, troca de inteligência e compartilhamento de radar, sem grandes anúncios públicos.
Dependência tecnológica dos EUA
Por mais que o Golfo busque maior autonomia, a realidade é que ainda depende fortemente da tecnologia militar dos Estados Unidos. Após o ataque, o Catar buscou garantias de que os EUA continuariam a ser seu parceiro de defesa. Afinal, os sistemas antimísseis balísticos americanos continuam sendo a espinha dorsal da segurança regional.
No entanto, a percepção de que o apoio dos EUA é condicional e transacional cresce entre os líderes do Golfo, que agora buscam equilibrar suas relações de defesa, criando um polo de segurança liderado por eles mesmos, entre o Irã e Israel. A Otan islâmica talvez não se concretize como imaginado, mas o caminho rumo a uma arquitetura de defesa regional independente já foi iniciado.
